27 de setembro de 2010
“Foi naquele lá, olha. Naquele. Tá vendo?” Dona Ana apontava para o apartamento do 7º andar, onde, uma semana antes, havia ocorrido o incêndio. Mais abaixo, no 4º andar, Anastasia, Aécio e Itamar sorriam amarelo num banner eleitoral.
Ninguém sabe como começou o fogo em um dos meio-apartamentos da torre de número 100, ocupado por um catador de papel. Mas o espetáculo que se seguiu aconteceu comme il faut. Pânico, gritos, chamas, luzes, um helicóptero que sobrevoava o local, jornalistas que abordavam supostos feridos e devoravam relatos impossíveis, sirenes, fumaça, comoção, ação.
Depois que os bombeiros controlaram o fogo, depois que as luzes e a fumaça baixaram, depois que os jornalistas se foram saciados, a notícia que esqueceram de espalhar: homens do batalhão de choque da polícia militar, cujo ônibus carregado chegara em meio à bagunça, haviam tomado as entradas do prédio. A partir daquela noite, os moradores da torre 100 estavam impedidos de voltar para suas casas.
As torres do edifício Saint Martin, em Belo Horizonte, conhecidas localmente como Torres Gêmeas, foram ocupadas em 1996. A construtora, que vendera sonhos (à época debutantes) de nomes à francesa a mais de 100 pessoas faliu, deixando dois enormes esqueletos e a realidade concreta do calote à brasileira.
Nos 17 andares de cada torre, em apartamentos inteiros ou meiados (os meio-apartamentos), instalaram-se cerca de 180 famílias. Apesar das três ordens de despejo emitidas desde então, os moradores foram se ajeitando, equipando espaços privados e comuns. Os poços dos elevadores foram fechados, portas e janelas foram instaladas, ligações elétricas clandestinas proliferaram e os lares ganharam décor à prestação e a prazo.
Depois do incêndio, os moradores só podem subir aos apartamentos, em que muitos moram há mais de 14 anos, acompanhados por policiais armados. Ainda assim, não podem tirar quase nada. “Só mesmo documentos e remédios, e olhe lá”, contava dona Ana, moradora desabrigada.
8 de outubro de 2010
Um pequeno montinho de pessoas ia se formando em torno de três policiais militares no pátio dos prédios. “Isso aqui já foi espaço privado seus, mas agora inverteu a situação, hoje é espaço privado nosso”, esbravejava um dos policiais. Os moradores haviam se reunido no pátio para receber Raquel Rolnik, relatora da ONU para a Moradia Adequada.
Depois de um tour pelos abrigos e barracas improvisados, Rolnik confessou que não trazia novidades. Os moradores ouviram aqueles que seriam (teoricamente) seus direitos para serem informados, em seguida, de que o prefeito da cidade não se dispunha a garanti-los. “Estou absolutamente chocada e preocupada com que estou vendo […] O prefeito não apresentou, para mim pelo menos, nenhuma proposta de saída, de solução para a situação que está sendo vivida aqui.”
No Brasil, o direito à moradia ganhou vigor (teoricamente) em 2001, com a publicação do Estatuto da Cidade. O Estatuto introduziu na legislação brasileira instrumentos legais norteados por noções relativas à ligação entre moradia e acesso a equipamentos e à função social do imóvel.
De uma sala no 6º andar da Faculdade de Direito da UFMG, estudantes associados ao programa Polos de Cidadania acompanham diversas ações de despejo coletivo, cada vez mais numerosas em Belo Horizonte. Ali explicaram que o Estatuto da Cidade flexibiliza a noção de propriedade do imóvel ao atrelá-la a sua função social, o que tende a gerar conflitos, já que a lógica do Código Civil brasileiro é essencialmente privatista. Apesar de a legislação prever a desapropriação de terrenos ou imóveis por descumprimento da função social, ela quase nunca acontece.
Uma pesquisa realizada em 2008 pela Fundação João Pinheiro indica que a região metropolitana de Belo Horizonte tem um déficit habitacional de cerca de 116.000 moradias. A prefeitura apresenta números mais prosaicos, que giram em torno de 50.000 moradias. O número de domicílios vagos em condições de serem ocupados e em construção, ainda segundo a Fundação João Pinheiro, chega a mais de 170 mil.
Em 2004, a Associação de Moradores das Torres foi habilitada no Edital do Programa de Crédito Solidário da CAIXA, gerido pelo Ministério das Cidades. O projeto enviado previa financiamento dos custos de desapropriação e de reforma dos prédios. O custo por família seria de menos de 20 mil reais – bastante inferior ao valor médio gasto na construção de habitações populares pela prefeitura de Belo Horizonte. A reforma ainda minimizaria impactos sociais, já que os moradores poderiam permanecer na região onde trabalham e estudam seus filhos. Mesmo com a aprovação, o projeto não instigou a criatividade de governantes locais e foi inviabilizado pela solicitação, por parte da CAIXA, dos projetos executivos que, no entanto, não estavam previstos no edital.
O desinteresse não se restringe a municípios específicos ou a administrações mais perversas. Críticos do programa federal Minha Casa Minha Vida lamentam que ele priorize o setor imobiliário e o da construção civil, sem que seja sustentado por uma política nacional de moradia.
O programa autoriza, em Belo Horizonte, um crédito de 46 mil reais para a construção de unidades habitacionais destinadas a famílias com renda de até 3 salários mínimos (valor que, segundo a Prefeitura e as construtoras, é insuficiente). A reforma de edificações existentes e desocupadas custaria consideravelmente menos aos cofres públicos. No entanto, ainda que a modalidade de requalificação tenha sido incluída na lei do Minha Casa Minha Vida, ela ainda não foi regulamentada e, sobretudo, não tem sido promovida pelos agentes públicos responsáveis.
Rolnik se foi depois de uma espera forçada: motoristas de taxi se recusavam a dirigir até o local.
15 de outubro de 2010
As cerca de cinquenta pessoas que se reuniam no abrigo improvisado em uma loja no térreo dos prédios se abanavam com o que aparecesse pela frente. Era um dia quente e o ar estava carregado. Naquela primeira reunião, organizada pela Pastoral de Rua, seria definida uma posição consensual a ser defendida perante a prefeitura, mas sobravam posições e faltava consenso.
Alguns moradores das torres diziam querer continuar no prédio. Outros se dispunham a sair se fossem oferecidas vagas nos “predinhos”, habitações populares da Prefeitura. Moradores da torre 100, aludindo ao subsídio ao aluguel mencionado pela Prefeitura, diziam topar qualquer coisa, desde que a solução fosse rápida. Outros, por fim, não faziam a mínima ideia da razão de estarem ali. Todos gritavam.
A possibilidade de permanecerem nos prédios e negociarem a reforma nos moldes do projeto de 2004 foi levantada e defendida por alguns moradores, mas logo descartada.
-“O condomínio não fica por menos de 500, 600 reais.”
– “Aqui precisamos de porteiro 24 horas, de vigia 24 horas.”
– “Quem vai querer pagar por isso?”
Os “eu não” vinham em coro. Chegou-se a discutir as dificuldades de manutenção da piscina prevista no projeto de nome francês. Em nenhum momento da reunião foram considerados modelos colaborativos de gestão.
re os moradores é emblemática de um sistema político de representação popular pouco consolidado. Uma enorme parte da população, politicamente fragmentada, desconhece seus direitos e os canais de demanda e diálogo com o poder público, que tende a reproduzir a concentração de poder e a ideia de que o Estado opera favores. Joviano Mayer, da ONG Brigadas Populares, relata que a falta de articulação tende a se acentuar ainda mais em ocupações verticais.
Ao fim da reunião, parecia prevalecer a opinião do grupo a favor de qualquer-solução-desde-que-imediata, mas ainda reinava o caos.
18 de outubro de 2010
Já passavam das 15 horas, e o representante da Urbel não havia aparecido para a audiência que se iniciou às 14 horas. Cláudia Ferreira de Souza, promotora do Ministério Público estadual, chegou a sugerir, despreocupada, uma remarcação.
A reunião de líderes das Torres com o Ministério Público e a Urbel, Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte, havia sido marcada para quase um mês depois do incêndio. Claudius Vinicius Leite, diretor-presidente da Urbel, entrou na sala às 15:20 horas. “Atrasei?”. Desculpando-se, atendeu ao celular (“estou em reunião”) e, sem pressa, serviu-se de café de uma garrafa térmica que os outros ainda não haviam tocado.
O projeto de reforma dos prédios foi exposto por técnicos ao Ministério Público, moradores relataram a situação emergencial e precária em que se encontravam e a Urbel ofereceu a solução do subsídio ao aluguel, o Bolsa Moradia. Silmara Goulart, procuradora do Ministério Público federal, sugeriu que os moradores retornassem de imediato aos prédios com o compromisso assinado de saírem pacificamente quando houvesse alternativa.
Faltavam, no entanto, os laudos técnicos do Corpo de Bombeiros e da Superintendência de Desenvolvimento da Capital – SUDECAP –, que avaliariam as condições de segurança dos prédios depois do incêndio e os custos dos reparos. Sem os laudos seria impossível levar adiante as negociações. A solução do Bolsa Moradia demandaria o cadastro de todos os moradores e, portanto, tempo. Diante do impasse, Claudius sugeriu que os abrigos da Prefeitura (“que são ótimos!”) poderiam servir num primeiro momento, provocando a breve revolta (e risos irônicos) de moradores e representantes da Pastoral de Rua. A promotoria determinou que os laudos fossem entregues num prazo máximo de 48 horas.
A Urbel foi criada em 1983, passou por infindas reestruturações e hoje tem como função planejar e executar ações de urbanização (incluindo a regularização fundiária) de vilas e favelas, assim como remover e reassentar famílias de áreas de risco ou para a realização de obras públicas em Belo Horizonte. Apesar de haver o propósito discursivo de “incluí-las no mapa da cidade formal já urbanizada”, a Urbel tem sido acusada de atuar de forma discriminatória junto aos habitantes da cidade “informal”, reproduzindo as desigualdades e segregações espaciais, sociais e legais vigentes.
O jurista especializado em direito urbanístico e professor do University College de Londres, Edésio Fernandes, taxa de vergonhosa a atuação da Urbel, que, segundo ele, ainda não entendeu a nova ordem jurídico-urbanista e trata a população para a qual trabalha como beneficiária de favores do governo, e não como titular de direitos.
21 de outubro de 2010
Uma linha imaginária partia ao meio a sala de aula da escola onde estavam reunidos os moradores desabrigados e alguns funcionários da Urbel. No hemisfério esquerdo, 4 pessoas olhavam, com ares de reprovação, os companheiros que haviam cruzado para o outro lado. Eram os únicos a se oporem à proposta oficial de adesão ao Bolsa Moradia. O programa oferece uma ajuda, de caráter provisório, de 300 reais mensais para o pagamento do aluguel de imóveis, que devem ser encontrados pelas próprias famílias e aprovados pela Urbel. Foi, desde o incêndio, a única possibilidade de solução (além dos abrigos) acenada pelo poder público no escasso diálogo que se manteve.
Sandoval, um dos 4 resistentes, ainda tentou convencer os colegas do outro lado. “A prefeitura está conseguindo nos vencer pelo cansaço e falta de respostas. Mas temos direitos, estamos aqui há mais de 14 anos”. Não é que os outros discordassem, é que preferiam, resignados, alguma solução. Índio, um dos líderes, colocou a questão de maneira simples ao comandar a cruzada: “melhor um pássaro nas mãos do que dois voando”.
O modelo de aluguel subsidiado é bastante comum e bem-sucedido fora do Brasil. Em muitos casos, funciona melhor do que o modelo da casa própria. Além de ser flexível e economicamente mais viável, evita a periferização e permite maior controle sobre o déficit habitacional. No Brasil, onde reina socialmente o paradigma da casa própria, é um modelo emergencial e não se constitui como braço de uma política concreta de moradia. É emblemático, por exemplo, que o subsídio ao aluguel não exista como modalidade no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida. Os valores oferecidos não refletem a situação real do mercado imobiliário, o que gera um movimento forçado em direção a periferias cada vez mais distantes – e mais carentes de equipamentos e serviços.
Neide, uma das tantas moradoras que, apesar das dúvidas, havia cruzado a linha, ponderou que seria difícil encontrar imóveis nas redondezas pelo valor proposto. Um senhor que sentava em um banquinho ao lado dela riu histrionicamente, e lembrou que não eram “bacanas” para escolherem a região em que vão morar. Ninguém discordou.
28 de outubro de 2010
Dona Ana servia água gelada em pequenos copinhos de plástico enquanto esperavam a chegada de mais representantes. A apatia já dominava a loja abafada no térreo. Alguns moradores da torre 64 convidaram a arquiteta e professora Margarete Leta Silva para esclarecer detalhes do projeto e os custos de execução e manutenção. Leta apresentou o modelo alternativo de recuperação dos prédios, elaborado em 2004, que não se detém aos padrões convencionais de reforma e gestão. Ao mencionar a possibilidade de lucro com a venda de apartamentos reformados, causou um pequeno alvoroço.
Confirmando o que no fundo todos já sabiam, o Bolsa Moradia começava a se revelar inviável na prática. Surgiam sinais de que a papelada seria demorada, e aqueles que iniciavam a procura por imóveis tinham dificuldade em conseguir avalistas e, sobretudo, em encontrá-los no município de Belo Horizonte.
Como se ignorassem a decisão tomada havia uma semana, os moradores reconsideravam a reforma. Avaliavam com entusiasmo também a opção de obterem recursos para a eliminação de riscos iminentes até que a Prefeitura tenha vagas disponíveis nos “predinhos”. Dos laudos, porém, não se tinha notícia – as 48 horas já haviam se transformado em 240.
O atraso só parecia confirmar os enormes interesses em jogo. A Prefeitura falava em valores astronômicos para a recuperação (supostamente necessária) da estrutura. Solenes, representantes da Urbel mencionavam riscos estruturais que comprometeriam gravemente a vida das famílias envolvidas. Não houve comentários oficiais sobre o fato de ter sido permitido que vivessem expostas a riscos por 14 anos ou sobre o deslocamento súbito de vontades políticas, do descaso ao despejo.
Naqueles mesmos dias, um shopping center abriu suas portas (e acendeu suas luzes) no terreno em frente às torres, anunciando “uma nova etapa de desenvolvimento em Belo Horizonte”.
26 de novembro de 2010
O laudo da SUDECAP foi entregue aos moradores com um atraso de quase 40 dias. O documento confirmava as possibilidades de reforma levantadas pela equipe do projeto. As estruturas não estavam danificadas e deveriam ser recuperadas para que problemas estruturais a longo prazo fossem evitados. Até o fechamento desta edição de PISEAGRAMA, cerca de dois meses depois da determinação judicial das 48 horas, o laudo dos bombeiros ainda não havia sido apresentado. Os moradores continuavam esperando, sem acesso à própria casa.
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Como citar este artigo. REGALDO, Fernanda. Direito à moradia, acesso à própria casa. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 01, página 26 - 29, 2010.